O delito licitatório, tutelando o patrimônio público e a moralidade administrativa, exige, como resultado fenomenológico da dispensa do certame, efetivo prejuízo ao erário: “O tipo descrito no art. 89 da Lei de Licitação tem por escopo proteger o patrimônio público e preservar o princípio da moralidade, mas a conduta só é punível quando produz resultado danoso. É penalmente irrelevante a conduta formal de alguém que desatente das formalidades da licitação quando não há consequência patrimonial para o órgão público” (STJ, APn 261/PB).
Sua configuração típica requer, além do afastamento indevido, a ocorrência de dano concreto ao poder público: “Conforme entendimento recentemente pacificado nesta Corte Superior de Justiça, para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, devem ficar demonstradas a intenção dos agentes em lesionar os cofres públicos e a existência de dano ao Erário” (STJ, HC 202.937/SP).
Portanto, inexistindo prejuízo para o ente público, como resultado material da ação de dispensa indevida do certame, não há viabilidade para a persecução penal: “Não havendo na peça vestibular qualquer menção à ocorrência de danos aos cofres públicos em razão da dispensa ilegal de licitação imputada ao recorrente, constata-se a inaptidão da exordial contra ele ofertada. Precedentes. Recurso provido para declarar a inépcia da denúncia ofertada contra o recorrente nos autos da Ação Penal n. 0000516-22.2011.8.19.0069” (STJ, RHC 57.222/RJ, DJe 25/06/2015).
É a atual compreensão do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o delito não se aperfeiçoa simplesmente pelo “descumprimento da norma administrativa” e “atribuição de vantagem indevida ao licitante” (APn 281/RR). Para a Corte, são indispensáveis a ocorrência e a demonstração de dano ao erário, como resultado naturalístico do fato atribuído ao autor da dispensa indevida de licitação: “As ações criminais que envolvem essa espécie de crime licitatório não prescindem da comprovação do dolo específico e do dano ao erário” (APn 330/SP, Corte Especial), sendo “penalmente irrelevante a conduta formal de alguém que desatente das formalidades da licitação quando não há consequência patrimonial para o órgão público” (APn 261/PB).
Até o ano de 2012, o entendimento do STJ era no sentido de que o tipo do delito licitatório não exigia qualquer especial fim de agir, como elemento subjetivo, nem efetivo prejuízo, como resultado material. Mas, a partir do julgamento da AP nº 480/MG, em 29/03/2012, seguindo orientação então recentemente estabelecida pelo Plenário do STF, no Inquérito nº 2.482/MG, o Superior Tribunal de Justiça também passou a exigir, para a conformação típica do delito, tanto o dolo específico de causar prejuízo ao erário, como elemento subjetivo específico, quanto o “efetivo prejuízo”, como resultado material da conduta de dispensa indevida. São vários os arestos nesse sentido:
“Os crimes previstos nos artigos 89 da Lei n. 8.666/1993 (dispensa de licitação mediante, no caso concreto, fracionamento da contratação) e 1º, inciso V, do Decreto-lei n. 201/1967 (pagamento realizado antes da entrega do respectivo serviço pelo particular) exigem, para que sejam tipificados, a presença do dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo. Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal. – Caso em que não estão caracterizados o dolo específico e o dano ao erário. Ação penal improcedente” (APn 480/MG);
“O crime tipificado no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 não é de mera conduta, sendo imprescindível a demonstração de prejuízo ou de dolo específico. Precedentes desta Corte” (HC 164.172/MA);
“Conforme entendimento recentemente pacificado nesta Corte Superior de Justiça, para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, devem ficar demonstradas a intenção dos agentes em lesionar os cofres públicos e a existência de dano ao Erário” (HC 202.937/SP);
“Para a caracterização do crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/1993 é imprescindível a comprovação do dolo específico de fraudar a licitação, bem como de efetivo prejuízo ao erário” (REsp 1133875/RO);
“A jurisprudência desta Corte Superior passou a considerar indispensável a presença de dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo para a configuração do crime do art. 89 da Lei n.º 8.666/93” (AgRg no AREsp 152.782/SP);
“Malgrado haja sido reconhecido, pelas instâncias ordinárias, o dolo específico de lesar o erário, não há comprovação do alegado prejuízo” (HC 254.944/SC);
“Esta Corte Superior entende que a configuração do delito do art. 92 da Lei n. 8.666/1993 depende da demonstração do dolo específico do agente e da ocorrência de prejuízo ao erário” (AgRg no REsp 1360216/SP);
“O hodierno entendimento deste Tribunal Superior de Justiça é que para a consumação do delito previsto no art. 89 da Lei de Licitações haja a demonstração da efetiva ocorrência de dano ao erário. Precedentes” (AgRg no REsp 1370458/DF).
Essa orientação pretoriana foi recentemente reafirmada pelo STJ, nos seguintes termos: “Ao interpretar o artigo 89 da Lei 8.666/1993, esta Corte Superior de Justiça consolidou o entendimento de que no sentido de que para a configuração do crime de dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses previstas em lei é indispensável a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à Administração Pública” … “Não havendo na peça vestibular qualquer menção à ocorrência de danos aos cofres públicos em razão da dispensa ilegal de licitação imputada ao recorrente, constata-se a inaptidão da exordial contra ele ofertada. Precedentes. Recurso provido para declarar a inépcia da denúncia ofertada contra o recorrente nos autos da Ação Penal n. 0000516-22.2011.8.19.0069” (STJ, RHC 57.222/RJ, DJe 25/06/2015 – grifamos).
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Inquérito nº 2648/SP, pelo Pleno, em 2012, relatoria da Ministra Cármen Lúcia, foi o marco do atual entendimento jurisprudencial “nacional” a respeito do tema. Desde então, o STF, e os tribunais superiores, têm decidido que o crime não está só na vontade de inexigir e fraudar licitação, num caso em que o certame seria devido e exigível, nem está só na ocorrência de dano, mas na existência deste binômio. Em 2 de fevereiro de 2016, no julgamento do Inquérito nº 3731/DF, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, a Segunda Turma do Supremo Tribunal reiterou a jurisprudência da Corte, reafirmando que, para a adequação típica ao art. 89, da Lei das Licitações, “mostra-se necessária a existência de prejuízo ao erário” (Informativo Semanal nº 813).
No Tribunal de Justiça do RS vigora esse mesmo entendimento dos tribunais superiores:
“CRIME DA LEI DE LICITAÇÕES. DISPENSA. ART. 89, DA LEI Nº 8.666/93. DOLO ESPECÍFICO. PREJUÍZO AOS COFRES PÚBLICOS. Não comprovação. absolvição. Para a configuração do delito previsto no art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 exige-se a presença do elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o erário, bem como o efetivo prejuízo à Administração Pública. Muito embora, demonstrada a dispensa licitatória na contratação, não há prova de que os acusados agiram com a intenção de causar prejuízo ao erário e tão pouco comprovação do prejuízo advindo dessa ação. Absolvição que se impõe. Precedentes das Cortes Superiores e deste Tribunal” (Apelação nº 70073432957, Quarta Câmara Criminal, Des. Rogério Gesta Leal, julgado em 20 de julho de 2017).
“ Para a consumação do delito previsto no art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 exige-se a presença do elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o erário, bem como o efetivo prejuízo à Administração Pública. Não configurados tais elementos, e tendo o Órgão acusador pleiteado a absolvição, o juízo absolutório é imperativo. Precedentes das Cortes Superiores e deste Tribunal” (Ação Penal – Procedimento Ordinário Nº 70062655766, Quarta Câmara Criminal, Relator: Mauro Evely Vieira de Borba, Julgado em 21/07/2016 – grifamos);
“Concluiu a Procuradoria de Prefeitos que, embora tenha havido dispensa/inexigibilidade de licitação, não houve indicativo algum de prejuízo ao erário. Postulado o arquivamento do feito pelo titular da ação penal – art. 129, inc. I, da CF -, corolário lógico é o acolhimento a teor do art. 3º, inc. I, da Lei nº 8.038/90” (Representação Criminal Nº 70069590313, Quarta Câmara Criminal, Relator: Mauro Evely Vieira de Borba, Julgado em 23/06/2016 – grifamos);
“Considerando que a lei penal mais benigna tem efeito retroativo, a modificação substancial de entendimento jurisprudencial também tem que ter o mesmo efeito, na medida em que a jurisprudência sedimentada dos tribunais nada mais é, em última análise, do que a interpretação de texto legal. Em conseguinte, tem-se por cabível a revisão criminal apresentada com amparo em novo entendimento jurisprudencial. No caso em tela, não restou demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida por parte do réu de superar a necessidade de realização da licitação e da intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação, sendo que tampouco qualquer prova de prejuízo ao erário foi trazida pelo Ministério Público aos autos. Portanto, ausente o elemento subjetivo do tipo previsto no artigo 89 da Lei 8.666/93, resta procedente a presente revisão criminal, para o fim de absolver o requerente com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal” (Revisão Criminal Nº 70065689887, Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 10/06/2016 – grifamos);
“Embora a dispensa de licitação fora das hipóteses legais, não houve prejuízo ao erário, afastando a configuração do delito do art. 89 da Lei nº 8.666/93” (Representação Criminal Nº 70068935204, Quarta Câmara Criminal, Relator: Mauro Evely Vieira de Borba, Julgado em 28/04/2016 – grifamos);
“Reconstituição probatória insuficiente à imposição de condenação criminal. Ausente dolo específico e efetivo prejuízo ao erário, elementos necessários à configuração do delito previsto no art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93, de acordo com a orientação atual do Superior Tribunal de Justiça. Absolvição mantida. Apelo improvido. Unânime” (Apelação Crime Nº 70068332386, Quarta Câmara Criminal, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 31/03/2016 – grifamos);
“Conclusão de obra de ciclovia sem a realização de procedimento licitatório. Dispensa de licitação fora das hipóteses legais. Reconstituição probatória que aponta mais para negligência da administração no atendimento das formalidades da licitação ou de sua dispensa, do que propriamente a conduta típica prevista no art. 89 da Lei nº 8.666/93. Ausente dolo específico e efetivo prejuízo ao erário. Impositiva a solução absolutória. Apelo provido, por maioria” (Apelação Crime Nº 70065870040, Quarta Câmara Criminal, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 12/11/2015 – grifamos);
“Entendimento sedimentado, nas Cortes Superiores, no sentido de que o crime previsto no art. 89, da Lei nº 8.666/93, exige, para que seja tipificado, a presença do dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo” (Ação Penal – Procedimento Ordinário Nº 70058649104, Quarta Câmara Criminal, Relator: Rogério Gesta Leal, Julgado em 17/09/2015 – grifamos).
De observar, ainda que à época do fato denunciado a jurisprudência pudesse emprestar natureza formal ao crime de dispensa indevida de licitação, a jurisprudência subsequente e atual o reconhece como crime “material’ e “de dano”, movido por um “dolo específico”, numa interpretação judicial mais benéfica, que necessariamente deve retroagir, como forma de integração do princípio da legalidade:
“Considerando que a lei penal mais benigna tem efeito retroativo, a modificação substancial de entendimento jurisprudencial também tem que ter o mesmo efeito, na medida em que a jurisprudência sedimentada dos tribunais nada mais é, em última análise, do que a interpretação de texto legal. Em conseguinte, tem-se por cabível a revisão criminal apresentada com amparo em novo entendimento jurisprudencial. No caso em tela, não restou demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida por parte dos réus de superar a necessidade de realização da licitação e da intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação, sendo que tampouco qualquer prova de prejuízo ao erário foi trazida pelo Ministério Público aos autos. Portanto, ausente o elemento subjetivo do tipo previsto no artigo 89 da Lei 8.666/93, resta procedente a presente revisão criminal, para o fim de absolver os requerentes com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal” (Revisão Criminal Nº 70065335663, Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 10/06/2016 – grifamos).
Conclusivamente, não restando comprovado prejuízo para o ente público, não há viabilidade para a persecução penal e a sentença recorrida não pode ser mantida. Além do dolo genérico, como vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório, o tipo em questão requer a específica intenção de produzir e a “efetiva” ocorrência de um “prejuízo” aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação (STF, Inquérito nº 3077. Relator Ministro Dias Toffoli. Tribunal Pleno). “Não se aperfeiçoa o crime do art. 89 sem dano aos cofres públicos. Ou seja, o crime consiste não apenas na indevida contratação indireta, mas na produção de um resultado final danoso. Se a contratação direta, ainda que indevidamente adotada, não gerou dano para a Administração, não existirá crime. Não se pune a mera conduta, ainda que reprovável, de deixar de adotar a licitação” (Marçal Justen Filho, in Comentários à Lei das Licitações).
Seria incongruente, aliás, exigir-se a comprovação de dano ao patrimônio público (conforme jurisprudência pacífica do STJ) para a configuração do ato de improbidade administrativa de dispensa indevida de processo licitatório, e não se exigir igual resultado material para o crime de dispensa irregular de licitação, tratando-o penalmente como crime de perigo. A mesma conduta não pode ser “irrelevante” para o direito administrativo e, concomitantemente, “relevante” para o direito penal, sob pena de ofensa ao princípio da subsidiariedade, segundo o qual a intervenção penal só deve ocorrer quando os demais ramos do direito não forem suficientes para a resolução da questão conflituosa (STJ, REsp 1133875/RO).
O direito penal, como ramo do qual advém a mais grave sanção, que é a da privação da liberdade, funciona, na ordem jurídica, como um “soldado de reserva”, na expressão de Hungria. Sua intervenção é “subsidiária”, limitada às situações que exigem enérgica reação do ordenamento, exatamente pela severidade da pena. Através do tipo legal de crime, seleciona, dentre o conjunto dos fatos ilícitos em geral, aqueles que exigem reforço de tutela, erigindo-os em ilícitos penais. Numa representação gráfica através de dois círculos concêntricos, do “círculo maior”, que reúne os fatos ilícitos em geral, o direito penal escolhe aqueles que reputa exigentes de reforço de tutela, formando e reunindo-os em um “círculo menor”, dentro do círculo maior. Com isso, todo o fato ilícito penal é também um ilícito extrapenal, pois o círculo menor está dentro do maior, mas nem todo o ilícito extrapenal (círculo maior) também é um ilícito penal (somente aqueles fatos que estiverem dentro do círculo menor). Situado dentro do círculo menor, o ilícito penal não pode deixar de estar situado também dentro do maior, por localizar-se em uma área comum a ambos os círculos que possuem o mesmo centro (Francisco de Assis Toledo, in Ilicitude penal e causas de sua exclusão, pág. 14).
Entendimento diverso, de crime formal, invertendo esta lógica, faz tábula rasa dos princípios da fragmentariedade, subsidiariedade e intervenção mínima, especialmente porque, para as ações “apenas e tão somente de ofensa à probidade moral” da Administração Pública, no âmbito das licitações e contratações públicas, subsistem outros campos próprios de sancionamento, como através do instituto da improbidade administrativa, tal como atentamente leciona André Guilherme Tavares de Freitas, in Crimes na Lei de Licitações, pág. 24 e 32.
Em abono à natureza “material” do delito, e aos efeitos do princípio da proporcionalidade, deve ser observado que a pena mínima cominada, de 3 anos de detenção, é superior à pena mínima do crime de peculato, que é de 2 anos, delito reconhecidamente material (art. 312, do CP), e de igual identidade de bem jurídico. Esta relevante observação é feita na doutrina de Cezar Roberto Bittencourt, in Tratado de Direito Penal, vol. 1, pág. 24, que assim a explica:
“Como em determinadas situações o enquadramento da ação entre o tipo do peculato e o licitatório é feito com base no critério da especialidade, para subsunção no tipo do crime licitatório é exigível igual produção de dano ao erário, por uma questão de proporcionalidade”.