Homicídio e coação moral irresistível

Coação moral irresistível.

A série televisiva Hostages, em sua versão norte-americana[1], narra situação de coação moral por uma médica cirurgiã, que em meio a uma conspiração política comandada de dentro da Casa Branca tem a família tomada como refém e é ordenada a assassinar o presidente dos Estados Unidos durante cirurgia para a qual fora destacada, sob pena de serem mortos o marido, os filhos e ela própria.

Prevista na primeira parte do art. 22 do CP, a coação moral irresistível traduz situação de não-exigibilidade. Falta ao coato liberdade para agir em conformidade com a norma “não matar”, embora detenha o conhecimento potencial da ilicitude.

A exigibilidade pressupõe uma normalidade das circunstâncias fáticas ao tempo da conduta. Só pode ser exigido aquilo que é exigível.

Quando, porém, as circunstâncias concretas são de tão alta anormalidade a ponto de excederem a natural capacidade humana de resistência às pressões externas, a exigibilidade transmuda-se em inexigibilidade, pelo reconhecimento de que o agente, frente à anormalidade da situação fática, não poderia realizar ação distinta da realizada. Reconhecimento que o considera em sua individualidade, sem descurar, no entanto, de uma valoração sob o ponto de vista jurídico.

Em virtude do invencível constrangimento que o coator exerce sobre a sua psicologia, o coato constrói uma vontade viciada, que se lhe faz irrecusável nas circunstâncias concretas do fato em que se vê envolvido, sob pena de sofrer grave mal ou de permitir que este se produza, e em breve, a terceira pessoa, à qual se vincula emocional ou juridicamente, como reprimenda pela não submissão à vontade do coator, não se lhe podendo exigir, por consequência, conduta em conformidade com o direito, pois a culpabilidade depende da normalidade nas circunstâncias motivadoras da conduta.

A gravidade do mal ameaçado deve ser de iminente concretização e produzir um efeito moral de irresistibilidade ao coato, no sentido de inevitável, insuperável ou inelutável, como força externa da qual não se pode subtrair[2], levando-se em consideração, na avaliação da irresistibilidade, não a inteligência, prudência e discernimento do homem médio, mas as condições pessoais e mentais do coato, do seu conjunto de circunstâncias: “As condições de resistir ou não devem ser examinadas concretamente, diante das condições psicológicas do ameaçado, verificando-se se as condições mentais deste permitem ou não vencer o mal prometido”[3], pois “o direito não pode impor ao indivíduo a atitude heróica de cumprir o dever jurídico, qualquer que seja o dano a que se arrisque”[4].

Isso não quer significar, obviamente, flexibilização dos requisitos da coação moral, mas adequação do exame jurídico à realidade do fato. A excludente deve ser substancialmente comprovada por elementos concretos, não bastando a sim­ples versão do coato. Caso contrário, isto é, não exi­gida cabal comprovação da coação moral e de sua irresis­tibilidade por quem a alega, há o risco de uma in­falível e injusta válvula de escape, garantia de impu­nidade. Bastaria que os réus dissessem terem sido coagidos para conseguirem a absolvição. Assim, “Somente o mal efetivamente grave e iminente tem o condão de caracterizar a coação irresistível prevista pelo art. 22 do CP. A iminência aqui não se refere à imediatidade tradicional, puramente cronológica, mas significa iminente à recusa, isto é, se o coagido se recusar, o coator tem condições de cumprir a ameaça em seguida, seja por si mesmo, seja por interposta pessoa”[5].

Três personagens figuram na coação moral irresistível: o coator, o coato e a vítima da conduta realizada sob coação[6], devendo ser o coator uma pessoa física e não uma entidade jurídica ou espiritual, nem fenômeno meramente psíquico (hipnose), também não se configurando a excludente por “coação moral da sociedade”, como ente coator que impulsiona o agente a praticar o homicídio.

[1] Há uma versão israelense, com o mesmo nome.

[2] Mero receio de perigo, mais ou menos remoto, não a configura como excludente da culpabilidade, podendo, porém, produzir efeito na quantificação da reprimenda, à título de atenuante, conforme art. 65, inc. III, alínea “a”, primeira parte, do CP.

[3] JUTACRIM/SP, 49/384.

[4] RT 572/354.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, v. 1, págs. 362-363.

[6] STF, RT 541/446.