A necessária regulamentação da lei anticorrupção

A Lei nº 12.846/13, apelidada “lei anticorrupção”, também chamada pela CGU de “lei da empresa limpa”, prevê penalidades pelos três níveis da administração pública às pessoas jurídicas envolvidas em corrupção, fraudes em licitações e contratos públicos. Com vigência desde o mês de janeiro de 2014, aguarda regulamentação pela União, estados e municípios.

Embora não condicione sua imediata aplicação, a regulamentação é providência essencial à segurança jurídica.

Alguns dispositivos precisam ser detalhados para que se possam prever desdobramentos e consequências de seus comandos; competência para a instauração e julgamento dos processos administrativos, normas sobre o respectivo procedimento e prazos, critérios da dosimetria das sanções, destinação dos valores arrecadados pela imposição de multas, cadastro das pessoas jurídicas punidas, condições e efeitos dos acordos de leniência são temas que servem de exemplos.

No âmbito federal, a CGU apresentou proposta de regulamentação à Casa Civil há vários meses, sem que se tenha, apesar do tempo decorrido e dos noticiários frequentes e repetidos de corrupção contra a União, uma definição política a respeito pelo governo da União. Nos estados, apenas quatro já possuem regulamentação, Paraná, São Paulo Tocantins e Goiás, e na esfera municipal, pelas informações disponibilizadas na internet, somente a cidade de São Paulo.

Nos estados e municípios, a regulamentação servirá para a explicitação de competências sobre os órgãos encarregados de investigar a infração, aplicar as penas e negociar eventual acordo de leniência. A LAC fixa a competência da CGU para todos os casos que envolvam interesses da administração pública federal (art. 16, § 10º), mas não faz o mesmo quanto às demais esferas de poder.

Certamente, os chefes dos poderes estaduais e municipais, como autoridades máximas referidas pela LAC, não tomarão para si esta atividade investigativa e persecutória. Irão delegá-la, mas para qual órgão da estrutura de seus respectivos poderes? Por hipótese, ocorrendo corrupção que afete a administração pública estadual, pelo ato fraudulento em processo licitatório para fornecimento de material escolar, a qual autoridade a empresa envolvida deverá dirigir-se se quiser colaborar com as investigações, mediante acordo de leniência? A LAC autoriza que as autoridades celebrem acordos de leniência (art. 16), mas sem a regulamentação as pessoas jurídicas não sabem a qual estrutura de poder devam endereçar a proposta.

Assim, aos estados e municípios, a regulamentação é fundamental para a fixação da competência interna, que pode ser feita com base em distintos critérios, de centralização ou não. Determinado estado ou município pode dispor que a competência é dos seus secretários, como autoridades máximas dos respectivos órgãos (assim foi feito no Estado do Paraná); outro, poderá estabelecê-la à autoridade imediatamente inferior ao titular de cada órgão da administração pública (secretário adjunto ou substituto, a exemplo do que foi feito no Estado de Goiás); ou, ainda, é possível que o estado ou município adote um critério de centralização com a fixação de competência única e exclusiva para um único órgão e em relação a todos os casos (como feito pela Prefeitura de São Paulo – controladoria geral), mas reservando competência concorrente a outra entidade para os casos de inércia ou omissão (como no Estado de São Paulo, entre a Corregedoria Geral e os dirigentes estaduais, ou no Paraná, entre a Controladoria Geral e os secretários de Estado). A centralização das competências pode melhor atender a exigências de padrão no procedimento e de eficácia dos resultados. Há também o critério adotado em Tocantins, em que todas as secretarias estaduais e a Controladoria-Geral poderão instaurar processos, mas só a Controladoria terá o poder para assumir os casos mais relevantes e promover acordos de leniência.

Na disciplina das competências, é preciso cautela. Não podem ser outorgados poderes punitivos em favor de pessoa jurídica de direito privado, apesar de integrante da administração pública indireta. Sendo o poder de punir monopólio do estado, somente as entidades de direito público podem aplicar sanções às pessoas físicas ou jurídicas. As empresas públicas e as sociedades de economia mista, integrantes da administração indireta, são pessoas de direito privado (trata-se de princípio implícito, ex vi do   art. 5º, § 2º, da CF – c/c o art. 173, também da CF, que coloca a empresa pública e a sociedade de economia mista no plano da atividade econômica e no nível do setor privado).

Sobre os acordos de leniência também há espaço para a regulamentação. Poderá estabelecer a competência de um único órgão para negociação e especificação dos parâmetros aos acordos, conforme a conveniência do estado ou município. Poderá fixar critérios condicionantes próprios e específicos. No município de São Paulo, por exemplo, o acordo é admissível mesmo quando a empresa beneficiada não tenha sido a primeira a manifestar interesse em celebrá-lo (exigência feita pela LAC, com redução de até 2/3 – a detalhada regulamentação de São Paulo admite a possibilidade de redução da multa quando haja colaboração da pessoa jurídica após a fase inicial de investigação, com a redução da multa de até 1/3). A regulamentação poderá, anda, tornar possíveis os acordos mesmo em relação a fatos ocorridos antes da entrada em vigência da LAC. Os acordos são do interesse do poder público e beneficiam as empresas. O poder público, com as informações e documentos repassados pelas empresas, toma ou amplia o conhecimento sobre os fatos ilícitos, obtém provas com maior celeridade do que se agissem sem esta colaboração, ampliando-se as investigações e o espectro dos investigados. As empresas, por sua vez, cooperando com as investigações, recebem benefícios que se podem traduzir na isenção ou redução de algumas das penalidades estabelecidas. Por essa razão, mesmo que os fatos assumidos pela empresa sejam anteriores a LAC, a aplicação retroativa da nova lei é juridicamente admissível, na parte em que se mostra mais benéfica, ou seja, na previsão a respeito do acordo de leniência. A propósito disso, a imprensa nacional tem divulgado que empresas envolvidas em corrupção, por fatos anteriores a LAC, têm procurado a CGU manifestando interesse em firmarem acordos de leniência. Uma delas é a holandesa SBM offshore, que teria pago propinas a funcionários da Petrobrás. Empreiteiras listadas na operação Lava a Jato também teriam iniciado tratativas de um possível acordo (cabível também quanto às fraudes licitatórias punidas pela Lei 8.666/1993).

Outro importante tópico para regulamentação, inclusive porque, como novidade que é, a seu respeito a cultura jurídica nacional é desenvolvida, é o compliance. Derivado do verbo inglês to comply (cumprir), tem o significado de assegurar, por um conjunto de procedimentos voltados ao controle da integridade corporativa, o cumprimento das normas reguladoras do setor.

Dispõe a lei, em seu art. 7º, que será levado em consideração na aplicação das sanções a “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (inc. VIII), cujos parâmetros de avaliação serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal (§ único). Exatamente em razão do estímulo à criação de sistema de integridade ou compliance, como medida preventiva do desvio e atenuante da penalidade nos casos em que a prevenção não se faça exitosa, é que a CGU tem chamado a lei de “Lei da Empresa Limpa”.

A regulamentação do compliance é tarefa da competência da União, por expressa reserva da LAC. Assim, se estados e municípios quiserem regulamentar o programa de integridade, será sempre em caráter complementar.

Ainda que não se disponha da regulamentação federal, os anúncios feitos à imprensa pela CGU antecipam critérios de aferição da validade do programa de compliance em termos de estrutura e efetividade. Evidentemente, quanto mais robusto ou consistente for o programa, maior deverá ser o seu efeito atenuante da penalidade.

A avaliação positiva da estrutura começa com a verificação do comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, inclusive no sentido de que a ela também se aplicam as regras do programa. Sem esta chancela não há programa que se possa estruturar de modo sólido e preventivo. Recente pesquisa da Fundação Dom Cabral com 268 executivos, investidores ou donos de empresas sobre o conhecimento e apoio à Lei Anticorrupção, revela que 50% dos entrevistados conhecem bem a lei, mas 60% deles não possuem sistemas de compliance. Os dados também informam que entre os representantes de empresas com 100% de receita vindo do poder público, somente um terço acredita que a lei é essencial ao combate à corrupção.

Agregam-se à avaliação do programa, o exame sobre a existência e a disseminação interna, mediante comunicação e treinamentos periódicos, de códigos de ética e conduta, como constituições de direitos e deveres recíprocos entre a organização e seus públicos. Códigos existentes, mas não internalizados ou aplicados, nem atualizados, são como se não existissem, e isso compromete mortalmente o programa. Adequação dos parâmetros neles estabelecidos, mediante revisões e análises de risco, e treinamentos sobre o próprio programa de integridade são outras medidas essenciais à estruturação positiva e eficiente. Também, a existência de canais de denúncia, que protejam o denunciante sem descurar dos riscos de máculas à honra do denunciado, que emprestem sigilo e agilidade em suas ações, trabalhando em sintonia com organismos de controle interno. A transparência em relação a doações para candidatos e partidos políticos é outro relevante elemento desta avaliação. A realidade evidencia que as pessoas jurídicas, alvos específicos da LAC, são as maiores financiadoras das campanhas dos governos e parlamentos em seus três níveis.

Em termos de efetividade, a aferição deve passar pela avaliação da aplicação e dos resultados do programa diante das irregularidades ocorridas: eficiência das respostas dadas pelo canal de denúncia; ações de treinamento dos colaboradores que os capacitem a identificar e denunciar atos indiciários de irregularidades nas relações da empresa com o poder público; efetiva aplicação interna das penalidades previstas nos códigos; adoção de medidas saneadoras pelo afastamento ou remoção dos responsáveis e comunicação imediata aos órgãos da administração pública; quantidade de funcionários, utilização de agentes intermediários, como consultores ou representantes comerciais; verificação da não participação, tolerância ou ciência de pessoal da alta administração da empresa sobre o ato de corrupção.

Enfim, quer a LAC ações mais transparentes e honestas das pessoas jurídicas em seus relacionamentos, especialmente com os poderes públicos nos contratos e atos negociais; quer a LAC estimular a prevenção e a punição dos desvios não evitados, através de mecanismos de controle interno efetivos e eficazes, expressos em regulamentos e políticas de ética corporativa.

Portanto, a regulamentação é uma boa pauta política para os novos governos estaduais, pelas ruas repercussões na opinião pública e pela segurança jurídica que será capaz de oferecer, além da exemplificação que proporcionarão aos seus prefeitos e vereadores.

CARLOS OTAVIANO BRENNER DE MORAES, advogado.