Dolo eventual e motivo fútil

Dolo eventual e motivo fútil.

Apesar das posições jurisprudenciais contrária, somos pela inexistência de incompatibilidade científica entre o dolo eventual e o motivo fútil.

A valoração dos motivos não é do agente, mas objetivamente feita pelo intérprete do fato à luz dos padrões éticos vigentes no meio social em que o homicídio é praticado. A futilidade é um juízo de valor feito por quem julga e não pela pessoa julgada.

Francisco de Assis Toledo, enquanto Ministro do STJ, no julgamento do REsp-365, em 1989, com objetividade e síntese, assentou em voto: “Alguém, por motivo fútil, pode assumir o risco de produzir o resultado. Por essas razões, afasto a alegada incompatibilidade entre o motivo fútil e o dolo eventual.”[1] Neste recurso, interposto pelo MPPR, serviu de paradigma o acórdão do TJSP da lavra do eminente Desembargador Weiss de Andrade, na Apelação Criminal nº 45.067-3, no sentido de que “ao arriscar conscientemente e produzir um evento, o agente age querendo o evento e ao fazê-lo, ainda que não tenha interesse nele, presta anuência ao seu evento, e pode fazê-lo por futilidade, por frivolidade, por leviandade, de modo que não há falar que o dolo eventual não se compadeça com o motivo fútil.”

Em seu voto, o relator, Ministro Edson Vidigal, lembrou a posição favorável à harmonização entre o dolo eventual e o motivo fútil de ilustres autores, citando expressamente Roberto Lyra, Eugênio Zaffaroni, Andres Balestra, Johannes Wessels e o então colega de Tribunal e de Turma, Assis Toledo, concluindo que “Não há, no crime de homicídio, incompatibilidade entre dolo eventual e motivo fútil. É possível, por motivo fútil, alguém assumir o risco de produzir o resultado. Afastado, assim, o óbice de tal incompatibilidade, cabe ao Tribunal a quo examinar, em consequência, a existência da qualificadora referente ao motivo fútil.”

Nesta mesma linha foi o voto do Ministro José Dantas: “Insiste-se, portanto, no reconhecimento do motivo fútil como agiu o réu, qual o de, por ocasião de furto de alguns patos da sua propriedade rural, haver-se munido de um revólver e, na escuridão da noite, desfechado doze tiros na direção da vítima afinal atingida por um deles. Insiste-se, porque, segundo a doutrina louvada, não vem ao caso confundir o dolo – querer do agente, em grau direto ou indireto de intensidade – com o motivo.”

No HC 62.345/DF, impetrado em favor de paciente processado por homicídio qualificado pela futilidade do motivo determinante, a Quinta Turma do STJ, ao denegar a ordem, reafirmou a compatibilidade entre o dolo eventual e o motivo torpe. Do voto do relator, Ministro Gilson Dipp: “Com efeito, o fato de o paciente ter assumido o risco de produzir o resultado morte, aspecto caracterizador do dolo eventual, não exclui a possibilidade de o crime ter sido praticado por motivo fútil.”[2] Em outro HC, da relatoria do Ministro Nilson Naves, já por sua Sexta Turma, o STJ novamente reconheceu “penalmente aceitável que, por motivo torpe, fútil, etc., assuma-se o risco de produzir o resultado. A valoração dos motivos é feita objetivamente; de igual sorte, os meios e os modos.”[3]  Também AgRg no Ag 815.349, foi decidido que “nada impede que, agindo por motivo fútil, pode o agente assumir o risco de produzir o resultado.”[4] Mais recentemente, no REsp nº 912904/SP, interposto pelo MPSP, o STJ deu provimento renovando que “o fato de o Recorrente ter assumido o risco de produzir o resultado morte, aspecto caracterizador do dolo eventual, não exclui a possibilidade de o crime ter sido praticado por motivo fútil, uma vez que o dolo do agente, direto ou indireto, não se confunde com o motivo que ensejou a conduta, mostrando-se, em princípio, compatíveis entre si.”[5] O caso em julgamento envolvia o homicídio do filho de um ano de idade com dolo eventual. Após discussão com a companheira e por ela impedido de levar o colchão do quarto para a sala, despejou um litro de álcool sobre o colchão e ateou fogo, cujas chamas se alastraram atingindo mortalmente o filho que dormia numa cama ao lado. Reconheceu o Tribunal que a futilidade do motivo que o levou a atear fogo não se confunde com a assunção do risco de produção do resultado letal, não se afigurando, assim, incompatibilidade entre o dolo eventual e o motivo fútil.

Assim, reitera-se, em que pese a atual jurisprudência do STJ, é razoável interpretação da lei penal a posição que sustentamos, favorável à combinação acusatória de homicídio por motivo fútil com dolo eventual.

Dolo eventual e motivo torpe.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal, há compatibilidade entre o dolo eventual e a qualificadora da torpeza. O Pretório Excelso tomou essa decisão ao julgar o caso de médico que, mesmo inabilitado temporariamente para o exercício de sua atividade profissional, realizou diversas cirurgias plásticas que redundaram na morte de pacientes. O sujeito, mesmo sem desejar a morte das vítimas, assumiu o risco de produzi-las, atuando por ganância (cupidez), que configura motivo torpe. RHC 92.571, rel. Min. Celso de Mello, j. 30-6-2009. Estefam, André. Direito Penal Parte especial – Vol. 2 – 7ª edição de 2020 . Editora Saraiva. Edição do Kindle.

[1] STJ, Quinta Turma, relator Ministro EDON VIDIGAL, julgamento em 30/08/1989 e DJ de 10/10/1989.

[2] Julgamento em 07/11/2006 e DJ de 18/12/2006.

[3] HC 58423/DF. Sexta Turma, julgado em 24/04/2007, DJe 25/06/2007.

[4] Quinta Turma, relator Ministro Hamilton Carvalhido, julgado em 14/08/2007 e DJ de 19/11/2007.

[5] Quinta Turma, relatora Ministra Laurita Vaz, julgado em 06/03/2012, DJe de 15/03/2012.